Meu avô Manoel do Rêgo Lages: pai infinitas vezes
- dilsonlages
- 10 de ago.
- 10 min de leitura
Atualizado: 23 de ago.
[Dílson Lages Monteiro, professor, pesquisador, literato e idealizador do Museu Virtual de Barras do Marataoã]

Criança gosta mesmo é de brincar e de receber afeto. Eu era criança quando convivi com meu avô e sua casa significava diversão e carinho: o que dele mais guardo são as situações que criava para a minha satisfação e a de meus primos no Jenipapeiro. Sentíamos acolhidos, de um acolhimento chamado proteção, e divertir-se tinha lugar certo nas férias, que às vezes duravam até meses, longes da casa paterna, mas como se dela nunca nos tivéssemos desgrudado.
Hoje, no distanciamento temporal da idade adulta, vem, além da visão mais racional de todo aquele cenário rural, de sons, cores e sabores em todos os ritmos, tons e paladares únicos, uma emoção e uma nostalgia que não têm tamanho em nossos sentimentos. Essa emoção tinha uma imagem: Manoel do Rêgo Lages (1917-1990).
Quando declinamos o olhar interior para o ontem, surgem na memória da infância os pedaços das décadas de 1970 e 1980. Um tempo flutuando com tal leveza, cuja sensação que temos é a da fantasia de um mundo mágico de encantamentos e descobertas, inacessíveis como tal para as crianças da atualidade.
Vem um tempo de brincadeiras que jamais retornarão e, por isso, é sempre alegre vovô gritando, de riso aberto para o céu: “Boca do forno?”. Respondíamos: “Forno!”. Ele continuava: “Jacarandá?”. Respondíamos: “Dá!”. Interrogava: “Quando eu mandar?”. Em uníssono, devolvíamos: ”Vou!”. E finalmente recebíamos a nossa missão, quase sempre uma ordem divertida ou, quando já cansávamos, uma tarefa impossível, para se pôr fim à brincadeira.
Vem o Lampião Petromax, aceso no terreiro da casa, para ouvirmos as estórias de outro mundo, quando não nos era imposto rezar o terço depois do jantar. Hábito com o qual também nos acostumávamos e se transformava numa obrigação aceita com naturalidade. Rezávamos não apenas para que se “levassem as almas todas para o céu, especialmente as que mais necessitassem”, mas também para Deus “dar muitos anos de vida para papai e mamãe”. Eram as mesmas almas que faziam cócegas em meus medos, obrigando que carinhosamente vovô armasse minha rede próxima à sua cama, onde dormia, quando menino, sempre que estava na fazenda.

Vem da casa que era a figura de meu avô as partidas de dominó e baralho à luz de lamparinas. O movimento da quitanda pesando babaçu e despachando mercadorias, num tempo de acesso limitado a produtos alimentícios e industrializados. Vovô de óculos na ponta do nariz: “Quanto?”. O agregado respondia: “Vinte e cinco quilos”. Vovô emendava: “Despeje ali!”. Levantava-se a cancela do balcão e o morador despejava as amêndoas, trazidas em cofos, no canto direito do comércio, que rapidamente se avolumava a tal ponto que sentíamos a vontade de caminhar por sobre a montanha de coco babaçu e, estando ali, não resistíamos em mastigar amêndoas. “O que vai querer hoje?”... e o trabalhador rural olhava as prateleiras de cima a baixo, sufocadas de mercadorias, mas ia regrando a compra do mais essencial, pondo cada produto no cofo em que trouxera o babaçu. Às vezes, pedia também um grande trago de pinga que engolia com voracidade, cuspindo longe nas calçadas o amargor da aguardente. Talvez cuspisse também as mágoas e opressões da vida e da injustiça do mundo.
Era comum que trabalhadores aportassem no comércio da casa-grande da fazenda Jenipapeiro com cargas de babaçu sobre jumentos, além da que traziam sobre o ombro ou em grandes cofos. A amêndoa do babaçu, extraída em atividade manual exigente, dinheiro certo e quase sempre, a única fonte de renda. Entre os camponeses, as míticas figuras de Capelão (Antônio Cearense) e Pananã, seu sobrinho, acompanhados de Maria Moça. Retirantes que aportaram por lá na seca de 1932, juntamente com outras famílias.
Fizera o coronel Nelson Pires, sobrinho de Alfredo e sócio-gerente na Casa Esperança, loja comercial vinculada à fazenda de mesmo nome, viagem para o Canindé de São Francisco, no Ceará. Na volta, trouxera mais de 30 pessoas que padeciam da seca à beira das estradas, sob a promessa de que teriam terra para morar e plantar, numa região fértil e abundante de água. É o que conta ainda quem viveu o dia a dia dessa fazenda e remanescentes dessas famílias.
Vem da casa que era a figura de meu avô a calçada sobre o morro, tomada de silêncio enquanto ele ouvia a voz do Brasil. Meu avô, o mesmo de sempre na alta madrugada, balançando-se na sala, na cadeira, ouvindo a rádio Nacional, cuja audição das notícias e músicas se confrontava com a dos bichos despertando a manhã, para introduzir a certeza de mais um dia.
Vem da casa a figura de meu avô perguntando se já tínhamos namorada. O avô levando-nos aos sítios de frutas com o cuidado redobrado para não padecermos de animais peçonhentos. O avô acompanhando-nos para o banho no Açude ou no Tanque, sempre vigilante, vigilante, com uma alegria gigantesca quando o Jenipapeiro se enchia dos netos. O avô acompanhando trabalho na casa de farinha, nos armazéns, no abate de animais. O avô alegre recebendo visitas de longe. Poucas vezes, vi alguém receber tão bem, com uma fidalguia e apreço humanos que lhe eram próprios.
Vem da casa o caminhãozinho de madeira com o qual me presentou aos 6 anos, feito por marceneiro da região. Que rumo dei àquele presente que jamais deveria ter perdido? Como tenho saudade daquele caminhãozinho; vejo-o aqui, no chão, carregado de areia, andando pelas veredas, maiores do que as estradas desconhecidas dos nossos destinos. Estou vendo aqui meu avô entregando-me o caminhãozinho numa época de brinquedos raros. Ou pedindo a Antônio Dias que nos fizesse cavalinhos de carnaúba, e os meus, eu imaginava, mais velozes do que os de todo mundo, mais até do que minhas próprias pernas.
Meu avô materno Manoel do Rêgo Lages teve uma vida dedicada às lides da atividade comercial, da agricultura e da pecuária — a vida comum e cheia de expressividade de um tempo em que o mundo rural se impunha ainda forte sobre costumes e hábitos do viver — no saudável desafio de educar e ver prosperar a prole de 13 filhos. Uma vida, também, de atenção concentrada na formação dos filhos em Barras e em Teresina; no desafio em que a amizade, o entusiasmo e a generosidade do parente e parceiro comercial Antônio Félix de Carvalho Filho e do irmão dr. José Lages foram sempre encorajadores; como dos filhos Nelson, Rosa, Gladston e Joaquim, os mais velhos, sempre disponíveis a viver os ideais do pai, auxiliando-o nas demandas necessárias. Uma vida rica de satisfações, como o é a de todos que tem metas de existência. A felicidade era os seus propósitos: o amor à família e o desejo de vê-la adiante de si, adiante do que as escolhas tinham-lhe reservado, como anseia todo bom pai.
Em criança, vovô, órfão de mãe em tenra idade, fora mandado pelo pai para o ginásio em Parnaíba, onde também viviam os irmãos durante o período de aulas, e o que consta no boletim escolar dele são as notas de um aluno exemplar. Jovem, estudara em salvador e por último em Belém, antes de resolver regressar para a Esperança, segundo se conta, preocupado com as condições econômicas do pai, de contenção financeira, depois do famigerado conflito agrário da Trindade, o qual demandou em ação judicial no Supremo Tribunal Federal por mais de década e resultou em ação desfavorável ao pai, o coronel Alfredo Pires Lages (1873-1958). Disso resultaria um duro golpe econômico em um dos mais influentes latifundiários e comerciantes do Norte piauiense na primeira metade do século XX (proprietário de vasto número de fazendas entre Teresina e Porto dos Marruás); latifundiário cuja vida passaria a girar em torno apenas da Fazenda Esperança, berço de sua origem familiar mais imediata, e dos sítios a ela integrados, numa porção de 10 mil hectares. Aceitaram, ambos, com resignação, as contingências do destino e tocaram a vida em frente sem abatimentos.

Manoel do Rego Lages e esposa Maria Adélia de Carvalho Pires, em registro visual realista gerado por IA.
Adolescente, Manoel do Rêgo Lages casou-se com sua prima segunda Maria Adélia de Carvalho Pires, neta de sua tia Adélia Pires Lages e filha do matrimônio de seu primo Nelson Pires Alves e sua prima Adalgisa Pires de Carvalho e silva. Ele, da fazenda Monte Alegre em Batalha, tinha como pai Custódio Borges Alves Sobrinho, radicado em Batalha e descendente ainda de ramificação familiar barrense-batalhense, atrelada, além dos Pires Ferreira e Castello Branco, a outros agrupamentos como os Coelho de Resende e os do Monte Furtado, de Piracuruca. Ela, filha do coronel Trasíbulo de Carvalho e Silva, um dos mais combativos políticos da história de Barras, rábula, intendente desse Município e deputado estadual, irmão do ex-governador General Coriolano de Carvalho e Silva e do militar Francisco Epaminondas de Carvalho, que se fixou no Rio Grande do Sul em definitivo, após o governo do irmão. Casado, Manoel se estabeleceu, inicialmente, em Batalha, onde nasceu sua primeira filha, Célia Pires Lages, de saudosa memória, e onde manteve, sem o sucesso esperado, sociedade com o primo-segundo, sempre fiel e estimado por toda a vida, Raimundo Nonato Lages. De lá, passou a residir na localidade Santa Luzia, hoje pertencente à Nossa Senhora dos Remédios, então Porto, onde nasceriam os filhos Nelson e Rosa Maria.
Estabeleceu-se em seguida no Jenipapeiro, a 52 quilômetros do núcleo urbano de Barras do Marataoã, e um dos braços da antiga fazenda Esperança, , antes de seu desmembramento em outros núcleos. Ali, por um ano, seu pai, meu bisavô Alfredo, construiu, em formato de U, com as mesmas marcas da casa-grande da Esperança, agradável casa de fazenda, cujo encerramento da construção ocorreu em 1946, presenteando, na ocasião, com a nova edificação, Manoel e Maria, em nome de seus netos. Por que falar de uma casa? Ora, a casa é também uma família, simbolicamente as raízes e marcas de pertencimento de um agrupamento familiar a um lugar e a um tempo.
Manoel e Maria viveriam por toda a vida, por longos anos, nessa casa ainda hoje vigorosa na continuidade do encanto de sua descendência pela vida no campo, especialmente por intermédio do filho Gladston. A casa situada no alto de um morro, depois de uma curva, de onde se avistam outros morros tomados de vegetação e mistério e um horizonte que enche os olhos de esperanças. Naquela data, a pedido de Maria Adélia, a nora e sobrinha de segundo grau, vovô Alfredo passaria a morar na fazenda Jenipapeiro até quase lhe findar os dias, em 1958. Sentindo a proximidade da “indesejada das gentes”, há 3 dias da última despedida, a pedido pessoal, foi levado em romaria pelos filhos e agregados à sede da antiga Esperança, ao quarto onde nasceu, a 6 quilômetros da fazenda Jenipapeiro, e ali se despediria em definitivo do mundo.
Com o distanciamento temporal que a idade trouxe, vemos hoje que vovô era mais que o afeto, mais que sua casa mítica. Vovô era um homem justo, acolhedor, de espírito alegre, avesso ao aviltamento humano. Com o distanciamento temporal, eu vejo reverberar nele o que, adolescente, ouvia meu pai Gonçalo Soares Monteiro, um de seus quatro genros, pregar-me, não exatamente nestas palavras: “Onde vicejam rivalidades vãs, o egoísmo e a ambição sem limites, corroem-se os laços de convivência, inviabilizando transformações e oportunidades de crescimento para todos”. Meu pai ilustrava essa situação falando das ervas daninhas tomando o fôlego das árvores a que se prendiam.
Em meu avô, com a chegada da adolescência, em sua casa de portas abertas para acolher gente jogada nas lides no meio da mata, na forma amigável de tratar os trabalhadores rurais e no desapego às vaidades do dinheiro, eu enxergava o homem do coração maior do que o peito suporta, o homem pronto a ajudar. O homem generoso e justo. A palavra de quem o conheceu fala melhor por mim. Hoje, em um mundo de fragmentações e de fragilidade da condição de ser em detrimento do ter, de imediatismo e depreciação de virtudes e valores universais, pergunto-me até onde isso tudo tem seu real valor? Onde cabe mesmo o humanismo e se ele deve, de fato, ser guia da existência? Insisto em querer acreditar que sim.
Uma de minhas maiores felicidades junto ao meu avô foi o dia em que ele levou a mim, ao irmão mais novo e a um dos primos a uma grande lona onde o gado não correria encaretado. Eu tinha 12 anos. Barras recebeu um espetáculo circense diferente. Mais importante que palhaços, acrobacias, bichos exóticos para nossa cultura. Vovô viera à cidade, especialmente, para nos levar ao circo. A expectativa e adrenalina ganhavam forma em touros bravos provocados por corajosos cavaleiros, ao centro do palco, de gestos ligeiros, com fronha vermelha balançando nas mãos. O touro cavando a terra e arremessando a cabeça no ar, tentado acertar com os chifres o alvo. A plateia delirando de medo em um só grito: Uuuuuuu! Uuuuuuu! Uuuuuuu! Havia duas galerias, sendo uma delas mais próxima do palco, a especial, onde nos acomodamos, na primeira fila. A tão esperada atração surgiu: eu cochilava e acordei assombrado. O touro roçou a grade e olhou bem no fundo de nossos olhos. Vovô sorriu e nos disse que a grade de ferro era segura, que não tivéssemos medo, tratando de nos abraçar. Nunca me esquecerei daquele dia, como jamais me sairá do pensamento as longas férias escolares na fazenda, de muitas descobertas e alegrias, sendo uma das principais meu avô. Penso que todo avô é pai infinitas vezes...
Também jamais me sairá da lembrança o quatro de dezembro, quando estava prestes a completar meus quinze anos. Meu avô doente há um mês e quinze dias aproximadamente, de moléstia sufocante, que nos tomava de desespero, dor e sufocamento iguais aos seus, em dia fechado, eu sentiria pela primeira vez, de verdade, o peso da morte. Se a árvore derrubada, o pássaro caído, o gato envenenado, o cachorrinho velho desfalecido e tanta cousa que eu vivera provocavam uma sensação desagradável, era tudo isso muito pequeno diante da dimensão concreta de que tudo um dia fenece. Ouvi na rua a vizinha dizer que meu avô morria. Corri para sua casa, onde ele convalescia, a poucos metros da residência de meus pais. O quarto tomado de lágrimas; o avô na rede, filhos e netos de então acompanhando os últimos momentos, também os irmãos dr. José e Alcides Lages. Os olhos de vovô Manoel percorreram, todo o quarto enquanto se segurava nas mãos dele uma vela, para repentinamente, sem vida, esvaziar-se para sempre e José do Rêgo Lages, o mano mais novo, estender as mãos sobre as pálpebras e fechar-lhe os olhos, indicando que jazia, ali, agora apenas um corpo sem alma.
Meu avô Manoel do Rêgo Lages, pai infinitas vezes, transformava-se naquele dia, para sempre, em saudade.
.png)



Belíssimo texto. Emocionante registro histórico da vida do "Tio" Manoel Lages do Jenipapeiro. Em grande parte sou testemunha de tudo que foi narrado. Tempo bom.