Breves reflexões sobre a identidade de Barras do Marataoã
- dilsonlages
- 13 de mai.
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Atualizado: 15 de mai.
(*)Dílson Lages Monteiro

(*)Dílson Lages Monteiro
Cumpre-nos, inicialmente, destacar de que lugar social materializamos esta fala. O lugar é o do texto, mas especificamente, o do discurso, elaborado por meio de interditos e da relação entre léxico, sintaxe e enunciação; entendido, aqui, a partir do pensamento de Pêcheux, sob influência marxista:
“(...) toda formação social se caracteriza por certa relação entre as classes sociais e implica a existência de posições ideológicas e políticas que se organizam em formações, que mantêm entre si relações de confronto e antagonismo, de aliança ou dominação” (apud MUSSALIM: 54-55).
Entendamos , conforme estabelece Pêcheux, que
“Cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que são nem “individuais” nem “universais”, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras” (ibidem).
De que maneira nós, barrenses, constituímo-nos como comunidade imaginada? Valemo-nos, aqui, das explicações de STUART (2006: 50-51), ao analisar o conceito de cultura nacional:
“As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. (...) Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas”.
Posto isso, a partir de orientações de Stuart (2006:52) questionemos: que narrativa de cidade é contada e recontada pela história oficial, pela literatura, pela mídia, pela cultura popular? Quais estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos? Enfatizamos as nossas origens e as tradições? Sentimo-nos integrados a essas representações? Qual a importância delas à nossa vida cotidiana?
Para examinarmos, pois, a construção social da identidade de Barras, motivo destas notas no ano da graça de 2025, quando a cidade festejará 184 anos, considerando que o nosso papel é o do analista de textos, buscamos compreender representações ideológicas construídas social e culturalmente pela escrita da história, do memorialismo, da genealogia, do jornalismo e da literatura. Interessa-nos, enfatizamos, o texto, a compreensão das formações discursivas mais corriqueiramente empregadas entre os barrenses para definir uma cidade e sua gente.

Para grande número de barrenses, Barras é os rios, a igreja, a vida rural (ou os resquícios dela), enfim, suas tradições. A força desses elementos, arraigados à formação de sem número de aglomerados urbanos brasileiros, determinou ações, comportamentos e valores. A presença viva da fé e da igreja católica, que, inclusive, ganharam livro de memórias de autoria de Antenor Rêgo Filho, aparecem recorrentemente na organização do dia a dia. Muitos medem o fim do ano pela festa da Padroeira, ou o confundem com o próprio findar do ano. Ela é destaque nas paginas dos jornais. Figura, por exemplo, nas páginas de O tempo, em 1930. Nele, lê-se:
A grande festa da padroeira de Barras
Prometem desusado brilhantismo os festejos com que se comemorará, este ano, o dia da excelsa virgem da Conceição.
“Notícias procedentes de Barras dizem que são intensos e excepcionais os preparativos para a festa, deste ano, da milagrosa Padroeira da cidade a iniciar-se no dia 29 do corrente mês e a terminar a 8 de dezembro. Barras, em peso, na mais perfeita identidade de vistas, se empenha com raro entusiasmo, para que o dia da Virgem da Conceição se revista de indescritível esplendor. O ilustre vigário pe. Lindolpho Uchoa numa atividade admirável percorre em propaganda o interior do município, tomando extraordinário interesse no sentido de que a festa deste ano exceda com brilhantismo a dos anos anteriores. (...)”
Os rios são, sem dúvidas, outro elemento que bem nos identificam. Para quem, por exemplo, viveu em Barras nas décadas de 1970 e 1980, seria quase impossível buscar a cidade da memória e não se remeter a imagens de numerosos grupos em lazer no Marataoã e no Longá, à abundância de lavadeiras em todo o percurso, à margem daquele rio, na zona central; ao fervor com que se comemoravam os festejos de Nossa Senhora da Conceição, um fervor que se fortalece na preservação repetida da tradição; à força do extrativismo vegetal em seus últimos suspiros como atividade econômica forte na economia local, assim como à criação extensiva de gado. Os rios, a igreja, a vida rural... Também, historicamente, uma cidade com espaços sociais demarcados pela injustiça social, que força a migração em busca de oportunidades de emprego, educação e bem-estar.
Os rios, a igreja e a vida rural fundamentam as bases de nossa fundação como comunidade. É sabido que a David Caldas devemos os primeiros estudos registrando a história e a geografia de Barras, conforme ressalta Miguel de Sousa Borges Leal Castello Branco em seus Apontamentos biográficos de alguns piauienses ilustres e de outras pessoas notáveis que ocupam cargos de importância na província do Piauí, de 1878, ao reproduzir texto de Caldas, publicado em O amigo do povo, no ano de 1871:
“Em meados do século passado, o coronel Miguel de Carvalho de Aguiar, natural da província da Bahia, começou a edificar aqui uma capela, a qual não foi logo acabada por ter falecido o seu fundador.
Em 1759, tendo vindo a este lugar um missionário, frei Manuel da Penha ou frei Malagrida, com a sua palavra evangélica, concorreu para que Manuel da Cunha Carvalho e outros fiéis tratassem de concluir a capela supramencionada, que até então só tinha o presbitério coberto e o mais não passava de alicerces ou começo de paredes. A obra foi assim concluída em pouco tempo”.
Acrescenta David Caldas:
“Manuel da Cunha Carvalho legou por sua morte, Rs 150$000 para fundo de dotação da mesma capela, quantia que no tempo do padre Manuel Rodrigues Covete, foi recebida pelo administrador Manuel José da Cunha, sobrinho de Manuel da Cunha Carvalho, em 8 de dezembro de 1776 (...)
Em 2 de abril de 1804, quando só haviam nesta localidade duas casas de telhas e seis de palhas, faleceu Manuel José da Cunha, legando a Nossa Senhora, orago da capela, a meia légua de terras que possuía na fazenda buritizinho (...)”
Citando que, com a morte de Manuel José da Cunha a capela passa a ser administrada por Francisco Borges Leal Castello Branco, acrescenta ainda David Caldas:
“A 22 de agosto de 1819, tomou conta da administração da capela José Carvalho de Almeida, o qual, em 14 de julho de 1831, lançou os fundamentos de uma nova capela, hoje matriz, ficando a antiga contida no recinto desta, a qual já ameaçava ruína e demolida em 1835” (apud CASTELLO BRANCO: 1878, págs. 37).
Em seu artigo, publicado no jornal Amigo do Povo, escrevendo a cronologia da igreja católica e da própria organização da vida comunitária, anota ainda David Caldas:
“A povoação das Barras foi ereta em distrito de paz, em virtude da lei provincial n.656 de setembro de 1836, e instruções da presidência da província de 9 de setembro do dito ano.
Por lei n. 101 de 30 de dezembro de 1839, foi criada a freguesia e seus respectivos limites, por desmembração nas freguesias de Campo Maior e Parnaíba, marcados por portaria da presidência em data de 12 de novembro de 1840.
Por lei 127 de 24 de setembro de 1841, foi elevada à categoria de vila, sendo instalada a 19 de abril de 1842, pelo major, depois coronel, Silvestre José da Cunha Castelo Branco (...), o qual deu posse à primeira câmara do novo município (...)
A vila de Barras é assim chamada porque fica no centro de seis diversas barras de rios e riachos, a saber: a do Maratauã, que forma um poço de quatro quilômetros de extensão, com treze a dezessete decâmentros de largo, em frente da mesma”. (apud CASTELLO BRANCO: 1879, págs. 37-38)
Nas últimas décadas, o registro de David Caldas passou por várias leituras e novas interpretações permitiram, a partir, principalmente, das contribuições da genealogia, entender com maior exatidão de que maneira ocorreram os assentamentos humanos nesta região. Graças, sobremodo, aos estudos de Edgardo Pires Ferreira, Afonso Ligório Pires de Carvalho, Gilberto Sodré Carvalho e Valdemir Miranda, esclareceu-se a movimentação intrafamiliar entre os núcleos Carvalho de Almeida e Castello Branco, principalmente, na formação do patriarcado rural piauiense. As novas leituras permitiram que se pudesse, hoje, enxergar com exatidão como Buritizinho ou a povoação das Barras vai, entre outros fatores, por meio de laços de parentesco, constituindo-se tanto no século XVIII, quanto no século XIX. Hoje, essas descobertas ganhariam fôlego com um estudo minucioso do rol de fazendas da Antiga Barras ainda por se realizar com o rigor metodológico necessário.
A propósito das novas leituras sob o viés da genealogia a que aludimos e a título de ilustração, transcrevemos parte de artigo publicado no Portal Entretextos e reproduzido no jornal Diário do Povo. Nesse artigo, detendo-se na formação de Barras, a partir desse prisma, Gilberto de Abreu Sodré Carvalho esclarece:
“Em meados do século XVIII, o coronel Miguel Carvalho de Aguiar, filho do famoso Bernardo, e assim parente do nosso José, começou a construir uma capela em louvor de Nossa Senhora da Conceição, nas terras da sua fazenda Buritizinho, em meio à povoação nascente chamada “das Barras”.
Em 1759, sendo então terminada a capela em louvor de Nossa Senhora da Conceição, a fazenda Buritizinho passa a ser propriedade de Manuel da Cunha Carvalho, que se casara com sua prima residente no Piauí, de nome Isabel da Cunha e Silva Castelo Branco, filha de Manuel Carvalho de Almeida, referido acima, e de Clara da Cunha e Silva Castelo Branco. É provável que Manuel da Cunha Carvalho tenha sido titular da fazenda Buritizinho por conta de sua mulher e prima Isabel, a ter recebido de seu pai Manuel Carvalho de Almeida. É o que faz sentido, em vista de a região ter sido, de primeiro, ocupada por Manuel Carvalho de Almeida.
Quando da morte de Manuel da Cunha Carvalho e de sua esposa Isabel da Cunha e Silva Castelo Branco, no mesmo ano de 1776, sem filhos, a fazenda Buritizinho e mais terras passaram ao sobrinho de Manuel, de nome Manuel José da Cunha.
Para mais emaranhar a estória, esse Manuel José casou-se com uma prima, Inácia Teresa Pereira Castelo Branco, filha de Francisco da Cunha e Silva Castelo Branco (filho de Manuel Carvalho de Almeida) e de Ana Rosa Pereira Teresa do Lago (filha de Antônio Carvalho de Almeida, o velho). Ou seja, Inácia era filha de pai e mãe que eram primos primeiros, e prima do nosso José, esse também neto de Antônio Carvalho de Almeida, o velho.
Manuel José e Inácia não tiveram filhos. Inácia morreu em 1802 e Manuel José, em 1804. Por testamento e atos paralelos, estando doente, logo antes de sua morte, Manuel José nomeou procurador e administrador de seus bens ao seu parente Francisco Borges Leal Castelo Branco, marido e primo de Teresa Rosa do Lago Castelo Branco, irmã inteira de sua mulher Inácia.
Não está claro, mais é de se entender, que a fazenda Buritizinho, que circundava a povoação de Barras, foi passada a Teresa Rosa, irmã inteira de Inácia, ficando seu marido Francisco como procurador e administrador enquanto Manuel José vivesse. Outra sucessora de Manuel José e Inácia foi, assumo, a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, a qual foi a mantenedora da igreja, sob a orientação de Francisco Borges Leal Castelo Branco.
Fato é que, Francisco Borges Leal Castelo Branco e Teresa Rosa do Lago Castelo Branco têm uma filha, a quem chamam Francisca, que vai assumir, em documentos, o nome inteiro Francisca Castelo Branco. Ela se casa com o nosso José Carvalho de Almeida.
Como era de se esperar, José Carvalho de Almeida, por efeito de ser casado com Francisca se torna dono da fazenda Buritizinho e responsável, autoassumido, pela vila e pela igreja de Nossa Senhora da Conceição, pelo fato de suas terras as circundarem. Pelo que se sabe, apega-se à igreja, como devoto. Isso tudo ocorre por volta de 1819.”
O estabelecimento desses grupos familiares e de outros com eles relacionados encontra na atividade agropastoril, sobretudo na criação do gado, elemento determinante da atividade laboral. Diga-se de passagem que a pecuária foi atividade econômica principal do Piauí do século 18 e ainda vigoraria como um dos principais aspectos identitários no século 19. A isso se relaciona o estabelecimento de membros da Companhia de Jesus, praticando pecuária, conforme ressalta Carvalho (2007: 57)
“Sem perda de tempo, a partir de 1711, logo depois de tomar posse na terra, chegaram à Capitania padres curraleiros, e não agricultores ou botânicos. Um motivo maior, de caráter tecnológico, deve ter orientado essa decisão dos religiosos.
Não se pode desconhecer o quanto foi importante e profícua a presença dos jesuítas na pecuária, até ocorrer o sequestro dos bens dos religiosos, quase 50 anos depois de terem sido doadas por Afonso Mafrense”.
Dito isso, constata-se que a origem de Barras como assentamento humano é o curral e a igreja, a que se agrega, de maneira fundamental para a permanência humana, a abundância de água em seus vários veios, infelizmente, ao longo da história, ainda não alvo de políticas públicas eficazes. A importância, por exemplo, do Marataoã está expressa, muito além da lembrança de quando ouvimos o nome da cidade, absorvida formalmente em sua própria designação, por ocasião de sua elevação de Barras à categoria de cidade em 1889, com o nome de Barras do Marataoã.

Mais do que uma simples localização geográfica, as reminiscências do rio evocam, para quem, como nós, que vivemos em Barras nas décadas de 1970 e 1980, a figura de grandes invernos com as margens lambendo quintais de casas com violência; grandes piranhas, vermelhas e pretas, pescadas em abundância e toda sorte de peixes hoje raros em suas águas, alguns até definitivamente desaparecidos, como preconizara em carta, datada de 1974, o advogado barrense Durval de Carvalho e Silva, domiciliado em Pompeia-SP. Dirigindo-se aos familiares, por correspondência, profetizou: “O Francisco ainda está pescando? Deve ele ser mais comedido, pois o nosso Marataoã é pequeno”, e sem dúvida, não tem condições de “armazenar” tanto peixe”. Registre-se que o Francisco referido é o fazendeiro e liderança política Francisco Luís de Carvalho e Silva, chefe do Executivo Municipal entre 1951 e 1954. Em sua gestão, edificou-se uma das expressivas obras de infraestrutura de Barras, a Barragem do Pesqueiro, obra que favoreceu não apenas o abastecimento de água, mas também a pesca e o lazer.

Em nossa memória, o rio, ou os rios, é, ainda, a figura quase escassa de um trabalhador, visto hoje quase exclusivamente em motocicleta em comunidades rurais, o vendedor de peixes de porta em porta. Sua presença era rotineira nos invernos: de cabo de madeira sobre o ombro, segurava firme o peso dos cambos de peixes nas duas extremidades e o inconfundível bordão cortando a atmosfera: “Olha o peixe! Olha o peixe! Mandi, piau, surubim!”.
O rio Marataoã sempre se constituiu em patrimônio imaterial de destaque não apenas aos que aqui nasceram, mas também aos que passam por este chão. Recordando férias em Barras, na década de 1940, o professor da Universidade de São Paulo, piauiense Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, ressalta em seu livro de memórias sobre a Rua da Glória, em Teresina, o fascínio pelas águas calmas do rio. Relatando sua hospedagem em pensão situada na praça da Matriz, comenta:
“A pensão de D. Sinhazinha , ficava nessa praça, o coração da pequena cidade, pois nela estava a igreja matriz de N. S. da Conceição, padroeira da cidade. Esta era pequena e descalça, mas muito tranquila e limpa e tinha uma graça especial, como o rio Marathaoan, que serpenteava pela planície, alargando-se mais ou menos em frente à matriz e formando uma ilha muito pitoresca, onde os habitantes organizavam pequeniques e chamavam de Ilha dos Amores”. (p.262-263)
Diz ainda prof. Carlos Augusto Monteiro:
“O Marataoã era, ao tempo de minhas férias, a principal atração. Todas as manhãs, entre o café e o almoço, a garotada em férias e mesmo os rapazes da cidade reuniam-se para o banho. (...) Os homens tinham o seu ‘porto’ mais a montante. Abaixo, a uma razoável distância de uma meia légua, já fora da cidade, ficava o porto das lavadeiras” (ibidem).
Quem, entre os barrenses, naturais ou de afeto, não guarda no peito e no pensar uma lembrança amável desse rio?
***
Entre as imagens reconstruídas pela memória de uma cidade, imagem da qual se orgulham os barrenses, tanto crítica como alienadamente, está a de que Barras é “Terra de Governadores e Intelectuais”. O que isso diz verdadeiramente sobre o chão em que nasceram os governadores? O que isso diz sobre a cidade que consta como uma das que mais ocuparam assentos na Academia Piauiense de Letras ao longo de mais de 100 anos de existência da entidade? Como isso se incorporou à vida coletiva? Do ponto de vista da vida cotidiana, o epíteto, embora motivo de autoafirmação das narrativas sobre o lugar, não expressa, de fato, a valorização das tradições como capital cultural. Historicamente, raras são as práticas vinculadas à memória que utilizam essa narrativa para validar a autoestima ou comportamentos sociais propositivos úteis ao crescimento coletivo. Essa tradição de poder político e intelectual do passado é apenas narrativa de livros e da memória oral de uns poucos, dito da boca para fora ou mais vinculada à identificação da cidade para além da barragem do rio Marataoã do que nas ribeiras desse rio.
Antes de lançarmos hipóteses em resposta às formulações levantadas, a fim de mantermos a unidade do raciocínio ora desenvolvido, tomamos como definição de identidade a noção de sujeito sociológico, explicada por STUART (2006: 11). Segundo esclarece, referindo-se aos interacionistas simbólicos, o sujeito é
“(...) formado na relação com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitavam”.
Portanto:
“(...) a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem” (idem).
A identidade e a história de Barras, as oficiais, são representadas, contadas e decantadas, principalmente, a partir do lugar simbólico de um rio, de uma igreja, da vida rural, mas também da história e narrativas de seus filhos ausentes. É a história dos feitos deles, geralmente, em outras paragens. História de heroísmos, bravura, liderança e coragem. Essa imagem, envolta em romantismo, tem sua origem ancestral na figura medieval do desbravador português, não na história das conquistas a ferro e fogo; na figura do vaqueiro destemido, não na do homem usurpado em sua condição humana; na figura dos coronéis empreendedores, não na do jogo de forças em que o poder era exercido por quem mandava mais. O heroísmo, a bravura, a liderança e a coragem propaladas como tão naturais nossas (às vezes, genuína; às vezes, imaginada para reforçar uma identidade calcada em valores ilusórios) está no voluntariado da Guerra do Paraguai (nem tão voluntário assim...), na fundação de uma sociedade libertadora de escravos, adiante de seu tempo, referenciada por nomes como Odilon Nunes e Clóvis Moura, nas denúncias incontestes da injustiça social feitas por David Caldas, nos variados jornais em que esteve à frente, no poder exercido pela Oligarquia Pires Ferreira entre os anos de 1889 e 1930, na vitoriosa carreira política de um dos mais ilustres barrenses de todos os tempo, Leônidas Melo.
Mais poderíamos refletir sobre a identidade de Barras, a real e a imaginada. Mas paramos por aqui, fazendo alusão, em digressão, com a permissão do leitor, a duas imagens construídas por dois viajantes estrangeiros que passaram por Barras. O primeiro deles, Paul Walle, em 1910, registrada em No Brasil, do Rio São Francisco ao Amazonas. Diz:

“Mencionemos ainda Barras, ou Barras do Maratuã, Humildes, Itamarati, cuja propriedade é relativa e o desenvolvimento, muito lento. Convém dizer que a população de toda essa parte do Piauí, como também a do Sudeste do Maranhão, é de uma apatia inconcebível. Eles não se parecem em nada com seus vizinhos cearenses. Lá se cultivam, empregando processos rudimentares, arroz, mandioca, feijão-preto, cana de açúcar, em quantidades apenas suficientes para o consumo local. A própria criação de gado, outrora praticada em grande escala, está em decadência” (WALLE: 2005: 245).
Não acreditamos que o viajante se tenha despido da sua condição de estrangeiro em terras estranhas. Que tenha apeado do cavalo, olhado ao redor, abaixo do horizonte da vista. Que tenha admirado a abundância de vazantes e o que nelas se cultiva. Que tenha estabelecido algum contato pautado nas relações de igualdade e compreensão dos fazeres e práticas tão exclusivamente nossas. Que tenha conversado com a gente local de verdade.
O segundo, o alemão LUDWING SCHWENNAGEM, que, conforme anota Moacir Lopes:

Fenícios no Brasil (Antiga História do Brasil: de 1100 A.C a 1600 D.C.)
“Já andava em 1910 percorrendo o Brasil e estudando as condições sociais do povo brasileiro” (SCHWENNAGEM:1970,13).
Sobre ele, Moacir anotou em prefácio a Fenícios no Brasil ( Antiga História do Brasil – de 1110 A.C a 1500 D.C):
“Em Teresina existe uma memória no povo de que por aqui passou esse alemão calmo e grandalhão que ensinava História e bebia cachaça nas horas de folga, andava estudando umas ruínas pelo Estado do Piauí e outros do Nordeste, e que chegou a Teresina no primeiro quartel deste século, não se sabe de onde, e morreu sem deixar rastro, não se sabe de quê, e andava rabiscando uns manuscritos sobre a origem da raça Tupi, lendo tudo o que era pedra espalhada por aí. Seu nome é tão complicado que muitos o chamam Chovenágua” (Ibidem)
Registra SCHWENNAGEM (140-142):
“(...) As serras do município de Barras que flanqueiam o curso do rio Longá contém quartzo branco e quartzo preto em grandes blocos, o sinal de que naqueles morros existem filões auríferos. Além disso, existem ali nos rochedos dúzias de letreiros e sinais de mineiros, pintados com tinta encarnada. Os moradores da região confirmam que nos leitos dos riachos que vem das serras, acham-se muitas vezes, no fim do inverno, pequenas pepitas de ouro. Um velho ourives da cidade de Barras declarou ao autor que conhecia muitos Iugares onde se podia procurar ouro fino.
(...)
A respeito das minas auríferas de Barras, deve-se ainda constatar que ali não existem grutas com corredores indicando que os antigos mineiros já tiravam os filões do interior das serras. Eles tiravam o ouro só dos cascalhos e deixavam intactos os filões. Aí está uma perspectiva promissora para o futuro”.
Onde estaria o ouro de Barras?

Dílson Lages Monteiro, ficcionista, poeta e pesquisador, é membro da Academia Piauiense de Letras e curador do Museu Virtual de Barras do Marataoã.
Referências
BRANCO, Miguel de Souza Borges Leal Castelo. Apontamentos biográficos de alguns piauienses ilustres e de outras pessoas notáveis que ocupam cargos de importância na província do Piauí. Teresina, PI: [s.n.], 1878.
CARVALHO, Afonso Ligório Pires. Terra do Gado: O Piauí Foi Colonizado na Pata do Boi. Brasília: Thesaurus, 2007.
CARVALHO, Gilberto de Abreu Sodré. As origens de Barras do Marataoã, acesso em portalentretextos.com.br, publicado em 20.07.2015.
MELLO, Leônidas de Castro. Trechos do Meu Caminho. Teresina: Comepi, 1982.
JORNAL O TEMPO. A grande festa da padroeira de Barras.1930.
MELLO, Leônidas de Castro. Trechos do Meu Caminho. Teresina: Comepi, 1982
MONTEIRO, Carlos Augusto. Rua da Glória. Volume 4. Teresina: EDUFPI, 2015.
MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Org.). Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004.
SCHWENNAGEM, Ludwing. Antiga História do Brasil – de 1110 A.C a 1500 D.C: Tratado Histórico. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Cátedra, 1970.
STUART, Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. tradução Tomaz Tadeu da Silva,. Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006
SILVA, Durval de Carvalho e. Correspondência ao irmão Francisco Luís de Carvalho e Silva. S/D.
WALLE, Paul. No Brasil, do Rio São Francisco ao Amazonas. Tradução: Oswaldo Biato. Brasília: Senado Federal, 2006.
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