Antenor Rêgo Filho e a tradição imorredoura da memória
- dilsonlages
- 21 de abr.
- 4 min de leitura

(*) Dílson Lages Monteiro
Somos seres de linguagem. Significa dizer: somos fabulação. Representamos a vida por meio de narrativas que dão sustentação à nossa identidade e nos integram à convivência humana e à natureza. Com ou sem tecnologia, encontramos meios de materializar pensamentos e emoções em narrativas que, ao ecoarem entre semelhantes, proliferam-se a ponto de projetar-se aos nossos olhos um modo de ver o tempo, os costumes e as nós mesmos.
É na literatura que essas marcas de nossa subjetividade como seres de linguagem refletem-se com mais fidedignidade. Saindo da esfera utilitária para a da plurissignificância imaginativa, a palavra potencializa a capacidade de ativar, também, mundos que não conheceríamos de outra forma que não pela representação da escrita literária, em seu modo único de revelar subjetividades. Assim é que tudo que nos cerca passa a ser humanizado e nos comove profundamente, seja pelo lirismo, seja pela crítica social, seja pelo humor.
Uma das matrizes de tudo isso está no conto popular e na crônica. As lendas, as crendices, as superstições, os fatos do cotidiano cristalizados de significado coletivo encontraram formas de dizer sobre comunidades e culturas inteiras e foram se modificando a darem forma a gêneros mais complexos dos quais até hoje se alimentam, revigorando a força da tradição.
Antenor Rêgo Filho é autor que, possuidor de projeto literário e memorialístico contínuo e consistente, vem nos presenteando ao longo de sua trajetória com contos populares e crônicas que servem tanto à literatura quanto à história e à memória. Em sua prosa agradável e rica, em um jeito de corporificar a alma, o léxico e a essência de sua terra natal, reverbera toda a tradição de uma gente alegre, festiva e avessa à indignidade. Nele, espelha-se a histórica Barras do Marataoã, em textos que vão além de sua vocação para o memorialismo, a uma escritura em que o espaço-físico e temporal subvertem-se em nomes e histórias, cheios de humor cativante.

Assim se consagrou entre nós o volume de crônicas e contos Jacurutu, saudado efusivamente por escritores como Herculano Moraes e José Ribamar Garcia. Assim são as novas narrativas que ele dá conhecimento à sua grande legião de leitores-admiradores no volume “Bafute”, que agora publica. Em 29 textos de refinado humor, o leitor encontrará, principalmente, uma gente e uma Barras de antanho, com costumes, hábitos e valores bem diferentes dos que vivem as gerações correntes e, por isso, mais significativo é o sentido social desta obra. O leitor se encantará pelas referências geográficas, ou mesmo por tipos humanos, em que se representa o caráter universal da literatura mesmo de textos que reproduzem a cosmovisão da aldeia.
A oralidade é estilizada pela fusão entre referências temporais e espaciais, que se unem ao retrato social de tipos humanos bem característicos. Além, claro da explicitação da identidade de Barras do Marataoã, por meio do léxico, que empregado com naturalidade, dá graça e leveza às narrativas. Nelas, figuram o município das décadas de 1930 a 1960. Lugares como o Bairro Boa Vista, a ponta da Rua Grande, o perímetro mais central da urbe, em meio à vivacidade do Marataoã, antigas fazendas se somam ao cotidiano em seus acontecimentos triviais personalísticos, a prostíbulo, à sátira ou à crítica bem-humorada ao comportamento das elites políticas e econômicas, a lugares da vida citadina como a quitanda, o bar, a barbearia, às rodas nas calçadas, às contradições do aparelho policial, à influência dos pequenos comércios na vida da cidade, aos hábitos da aristocracia rural em um tempo de predomínio da força do campo sobre a cidade, às crendices e às supertições, às festividades religiosas e costumes a elas relacionadas.
Entre os tipos humanos, encontra-se a humanidade do médico empreendedor sem limites para o altruísmo (em vários textos, há muitas referências a figura ímpar e inesquecível do médico José do Rêgo Lages). Também se lê o lado cômico do exercício desarrazoado do poder político; a contradição humana de valentões e velhacos; a malandragem dos que arranjam um jeitinho de afastar a qualquer custo a adversidade; a graça de lugares que não deixam chances e oportunidades para tempos infelizes nem para o falso moralismo. Nos contos e crônicas de Antenor Rêgo Filho, tudo é leveza, graça e espontaneidade.
Entre os muitos méritos de cada uma dessas narrativas, está o humor que escorre em cada texto e a reinserção no cotidiano da memória, agora em palavra escrita, de dezenas de estimadas figuras da vida social de Barras dos últimos 70 anos, sobretudo. Destacamos, ainda, a naturalidade com que apresenta um leque extenso de palavras bem nossas; ditas de maneira bem nossa. Deixamos para o leitor a tarefa prazerosa de descobrir o que aqui dissemos, porque as narrativas de sucesso deste volume dizem infinitamente mais do que qualquer explicação que venhamos a realizar sobre elas.
O humor é subversivo; disso sabemos. O hábito de recontar (ou recortar) é a força viva da memória; disso também sabemos. Que o humor e os recortes de cada uma dessas histórias ressoem em nosso sentimento como as águas tranquilas e cristalinas do Marataoã e nos contagiem do amor incondicional ao lugar que é nossa origem. Viva “Bafute” e a vocação de Antenor Rêgo Filho para nos trazer de volta a presença imorredoura da memória!
(*)Dílson Lages Monteiro, curador do Museu Virtual de Barras do Marataoã, é literato, professor e autor de obras de ficção, de ensaios e memorialismo. É membro da Academia Piauiense de Letras.
Assista à análise da obra em vídeo:
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