Algumas lembranças barrenses de meu pai
- dilsonlages
- 12 de abr.
- 6 min de leitura
(*) Elmar Carvalho

Miguel de Carvalho e filhos, quando da comemoração de seus 90 anos.
Miguel Arcângelo de Deus Carvalho é o nome completo de meu pai. Ele nasceu em Barras, no dia 5 de janeiro de 1926, filho único de João de Deus Nascimento e Joana Lina de Deus Carvalho. Perdeu seu pai quando tinha apenas 13 anos de vida, e cursava o ginásio no Colégio Diocesano, em Teresina. A infausta notícia lhe foi transmitida, com as cautelas de praxe, pelo Monsenhor Chaves, que depois viria a se tornar um dos maiores historiadores do Piauí, do qual vim a me tornar amigo, quando fui o presidente do conselho editorial da Fundação Cultural que leva o seu nome.
Recebeu a impactante notícia da morte de seu pai logo após concluir a prova parcial do dia 30 de setembro de 1939. Padre Chaves foi afetivo e cuidadoso ao lhe dar a notícia, proferindo palavras de conforto e resignação; recomendou que meu pai fosse repousar.
Diante desse inesperado acontecimento, papai voltou para Barras, a chamado de sua mãe, e só veio a concluir o ginásio muitos anos depois. Meu avô paterno se chamava João de Deus Nascimento; era filho de Emiliana e Silvestre Ribeiro do Nascimento. Graças a seu esforço e labor, fez prosperar uma gleba de terra, situada na data Luiz de Souza, e conseguiu amealhar algumas reses, engenho de cana e casa de farinhada. Era respeitado em sua localidade e na cidade de Barras, onde era muito conhecido.
Portanto, cedo meu pai teve que trabalhar, para sustentar-se a si e a sua mãe, que morou em sua companhia até quando faleceu em Campo Maior, no início dos anos 1960. Fora outros empregos, trabalhou na Casa Marc Jacob e na Casa Inglesa, em Campo Maior, para onde se transferira aos 26 anos.
Morava na vizinhança de meu avô uma sua parenta, creio que sobrinha, cega de nascença e entrevada, como se dizia antigamente. Levava a vida a cantar hinos religiosos e a rezar, em perpétua vigília e penitência. Meu avô, falecido em 1939, pedira para ser enterrado perto da cova de sua sobrinha. Talvez tenha sido recebido por ela, sarada de seus males, coberta pelo manto de glória e beatitude que deve ornar os que levaram uma vida de sofrimento, renúncia e conformação.
No cemitério campestre da chapada de Luiz de Souza, perto de faveiras, sambaíbas, paus-d’arcos e pequizeiros, repousam, lado a lado, os restos mortais de meu avô João de Deus e dessa parenta, que aceitou com fé e resignação o sofrimento que lhe coube, e que viveu como um anjo, a orar e a entoar cânticos e “excelências” a Deus.
Meu avô conheceu minha avó na cidade de Barras, onde ela morava em companhia de seu irmão Elpídio Lucas Furtado de Carvalho. Chamava-se Joana Lina de Deus Carvalho e nascera em Piripiri. Era filha de Miguel Furtado do Rego e de Izabel Lina de Carvalho, ambos de antigas estirpes piauienses.
Muitas décadas após meu pai deixar o seu pago, fui com ele conhecer o local onde ele nascera, uma gleba encravada na data Luiz de Souza, que fica a poucos quilômetros da cidade de Barras. Vi meu pai tomado de profunda emoção, com os olhos marejados, a olhar o olho-d'água de sua infância, que ainda corria perene, a rever o buritizal da várzea e o morro verdejante onde se erguera outrora a casa de seu pai.
Meu pai, ainda bem moço, veio para Campo Maior, onde trabalhou na Casa Marc Jacob e na Casa Inglesa, como já disse. Posteriormente, ingressou no antigo Departamento de Correios e Telégrafos - DCT, através de concurso público, no ano de 1958. No início de sua vida de casado e de servidor público, morou no povoado Papagaio, hoje cidade de Francinópolis, por cerca de um ano.
O DCT virou ECT, nos anos 1970, e meu pai terminou indo para Parnaíba, onde por vários anos chefiou a agência local dessa empresa. Mas, amante inveterado e incondicional de Campo Maior, após sua aposentadoria, terminou regressando mais uma vez a minha terra natal, onde morou até o falecimento de minha mãe, Rosália Maria de Melo Carvalho, ocorrido em 2013, quando se mudou para Teresina, onde faleceu em 5 de novembro de 2017. Nos seus últimos anos de vida morou em companhia de meu irmão Antônio José e de sua esposa Maria de Jesus.
Dentre os seus parentes mais próximos residentes em Barras, meu pai tinha especial consideração e estima por Elpídio Lucas, seu tio, e aos seus primos José, dito José Lucas, Salomão, Domingos Lucas, Noca, João Cardoso e certamente outros, cujos nomes esqueci, passados tantos anos. Em minha infância, estive de férias escolares em Ameixas, zona rural, hóspede de dona Noca e João Cardoso. Em minha adolescência passei, em algumas ocasiões, dias de férias na cidade, acolhido por Salomão de Sá Furtado. Em 1970, representando meu pai, fui para a posse de Salomão, como vice-prefeito, que, na legislação da época, passava a ser o presidente da Câmara Municipal.
Salomão era um exímio operador de aparelho morse. Funcionário do antigo Departamento de Correios e Telégrafos - DCT. Ele não precisava ver a fita com os sinais gráficos do morse. Só pelo som, ele sabia o conteúdo da mensagem recebida. Coisa rara na época, ele tinha uma biblioteca em sua casa. Entre outros volumes, possuía uma coleção do detetive Sherlock Holmes, da autoria do célebre Conan Doyle, e uma de livros sobre a Segunda Guerra Mundial. Folheei e li algumas páginas desses volumes.
Além de amante da leitura, ele tinha uma redação admirável, elegante, escorreita, e uma linda letra, estilizada, digna dos melhores calígrafos. Muitos anos após, quando participei da obra coletiva Galopando, lhe mandei um exemplar. Poucos dias depois, ele acusou o recebimento, através de uma bela missiva, em que dizia antever o meu futuro literário. Qual seria esse “futuro” não serei cabotino para revelar. Mas essa previsão alvissareira sem dúvida era fruto da amizade que ele tinha por meu pai, e que era correspondida na mesma intensidade.
Dentre os parentes não residentes em Barras (a maioria morava em Teresina), meu pai fazia referência com mais frequência ou tinha mais contato com os seguintes: Mariá, casada com Deusdete Castro, comerciante, Socorro Lages Furtado, casada com o Kidniro, funcionário INCRA, gostava de ler romances; em minha adolescência me emprestou o livro Brocotós, da autoria de Fontes Ibiapina, João Berchmans, que foi escolhido por meu pai para ser meu padrinho de crisma, mas que por fatores adversos, terminou não acontecendo, Sebastião Aécio, médico e gestor de órgãos da Saúde estadual, e Bilé Carvalho, de voz forte, grave, estentórica, vibrátil, quase um trombone, que em suas agradáveis conversas desfiava um vasto anedotário sobre fatos e pessoas de Barras.
Entre os vários parentes e amigos de meu pai, os seguintes, para minha satisfação e honra, também se tornaram meus amigos: Wilson Carvalho Gonçalves, notável historiador e dicionarista biográfico, membro da Academia Piauiense de Letras, auditor fiscal da Receita Federal e chefe na ESAF no Piauí, Adolfo Uchoa, desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Piauí - TJPI, Walter de Carvalho Miranda, meu professor no curso de Administração de Empresas (UFPI), desembargador do TJPI e presidente do Tribunal Regional Eleitoral-PI e Geraldo Majella Carvalho, sobre o qual já tive oportunidade de dizer o seguinte:
“Foi meu professor no curso de Direito (UFPI). Casou-se em 1954 com Maria Augusta Nunes, com quem passou a morar em Barras. Após o trabalho precursor e de consolidação de Helena Carvalho, Geraldo Majella, com o apoio de sua esposa, impulsionou o teatro em Barras, oportunidade em que atuaram no palco figuras como Bilé Carvalho, Francisca Araújo, Lourdinha Lustosa, Necy Araújo, Cauby Carvalho, Leônia Brasil e outros.
Organizou e dirigiu o coral da matriz. Foi diretor do Barras Clube. O padre Lindolfo Uchoa, Geraldo Majella Carvalho e José Alencar Lopes (Zé do Honório) desenvolveram intenso trabalho em prol da criação do Ginásio N. Sra. da Conceição, que foi instalado no prédio do Grupo Escolar Matias Olímpio, onde passou a funcionar no turno da noite. Foram seus primeiros professores Geraldo Majella, Maria Augusta Nunes, Eliseu Albano, Raimundo Baptista, Conrado Amorim e sua esposa Olga Fernandes.
Foi tabelião em Barras e Teresina. Exerceu o cargo de Juiz de Direito em Regeneração, ocasião em que se tornou um dos fundadores do Ginásio da CNEC nessa cidade, terra natal de sua esposa.”
Essas são, em síntese, algumas das lembranças mais recorrentes de meu pai, referentes a Barras, sua amada terra natal, e que consegui reconstituir para uma live realizada por Dílson Lages Monteiro, que se encontra disponível no You Tube e no seu notável Museu de Barras.
(*) Elmar Carvalho é membro da Academia Piauiense de Letras e de diversas academia regionais, entre elas, a Academia de Letras do Vale do Longá, cuja sede é em Barras do Marataoã-PI.

Assista a "Miguel de Carvalho: memórias de um barrense recontadas pelo filho Elmar Carvalho".
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